• “Adianto aos leitores de meu blog, que ele deve ser lido pausadamente, é de que não conheço a arte de ser claro para quem não deseja ser atento."

  • "Se você tivesse acreditado nas minhas brincadeiras de dizer verdades, teria ouvido muitas verdades que insisto em dizer brincando... Falei, muitas vezes, como um palhaço, mas nunca desacreditei da seriedade da plateia que sorria." Charles Chaplin

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A Dialética entre Aprender e Ensinar

Aqui você encontra meu texto escrito para o concurso nacional da Fundação Logosófica, que tinha por tema: a arte de aprender e a arte de ensinar. Diante do tema apresentado, construí esta raridade com o titulo a relação dialética entre aprender e ensinar. Pautado nos estudos que fiz, na área de pedagogia e com base nas teorias de filosofia para crianças, apresento uma nova forma de aprender e de ensinar. Aquilo que, para mim, seria a arte dual, competência básica de um educador. Infelizmente não me escolheram como vencedor. Haja visto, que nestes casos, onde são oferecidos prêmios aos vencedores, seja em dinheiro ou privilégios, é difícil se ter uma precisão na construção dos conteúdos, pois esta-se muito ligado aquilo que os avaliadores querem que seja o melhor, a imparcialidade na construção de um texto literário e a avaliação fica um pouco comprometida, embora eu tenha buscado completamente por esta. Aos meus apreciadores boa leitura. Segue a baixo o texto:
O Ensinar e o aprender estão intimamente ligados, constituem uma relação dialética. Compõe fatores e manifestações históricas. Apresentam-se indispensáveis para o conhecimento de si, da sociedade e do Criador. São características intrínsecas do comportamento humano. Uma vez dominante da arte de ensinar e aprender podemos proporcionar uma estreita relação de ensino-aprendizagem, de forma a enriquecer o ambiente com nos circunda.
Desde os primórdios, tão logo o ser humano se diferenciou dos primatas, compreendendo, por si só, de que era superior aos animais irracionais e que a sua existência não era só para se alimentar, acasalar e acomodar-se em seus alojamentos. Ele se reuniu, a princípio, em bandos e tribos a obedecer aos seus dirigentes, lhes acatando as ordens dadas, e melhor, aprendendo com eles um modo de viver que lhe permitia, passo a passo, dirigir-se a outros menos capazes, se tornando paulatinamente um educador. Pouco a pouco, porém, seguidamente, foram se desenvolvendo, com os mais capazes, portanto, inteligentes, se destacando dos demais. E, se esmerando na observação do que via, discernindo os seus predicados visuais, para, então, ensinar aos demais, com isso e por isso, de individuais, todos passaram a fazer parte de uma coletividade didática na arte de ensinar e aprender.
Ensinar e aprender constitui uma relação dialética por estarem intimamente ligadas uma a outra. Não se pode classificar a atitude ensinar como verdadeira quando esta se separa da atitude aprender. E não existe um aprender que seja válido, separadamente da atitude de ensinar. Ou seja, a pessoa que ensina precisa estar atenta às manifestações epistemológicas que se apresentam à relação ensino-aprendizagem. Ao contrário da forma tradicional de ensinar, deve haver uma relação de “mão dupla”, onde transmite e ao mesmo tempo recebe conhecimento. Onde a ação de ensinar de alguma pessoa, a verdadeira forma de ensinar, aquela próxima ao ideal que a maioria na sociedade almeja, deve estar ligada à maneira de agir de tal pessoa. Precisa conciliar teoria e prática. De modo que aos aprendizes exista a possibilidade de identificar na vida do educador, pessoa que ensina, a ligação com as palavras deste. São os exemplos de vida, que popularmente menciona-se. Em segunda via, na atitude de aprender deve conter o compromisso de ensinar. O conhecimento torna-se digno de louvor quanto este é disposto à sociedade como objeto comum e permite o acesso ao Bem para todos. Aqui, o verdadeiro aprendiz é aquele que decide repassar o que aprendeu. Transmitir aos outros o conhecimento a fim de torná-lo patrimônio da humanidade, são os ensinamentos transformadores. Esta atitude dentro da doutrina cristã estaria na figura do profeta. E como verdadeiro exemplo Jesus Cristo.Está presente no ser humano a busca da compreensão de si, do espaço onde vive e de Deus. Vê-se isto claramente na tradição histórica. O filósofo grego Sócrates, no séc. IV a.C. já havia encontrado no templo do Oráculo de Delfos a afirmação “conheça-te a ti mesmo”. Comumente existem pessoas se perguntando: “o que é o ser humano? Quem o criou?”. Aprender bem e ensinar com consciência permite levar a si e aos demais uma resposta satisfatória destas interrogações. Permite compreender e ensinar que somos uma sociedade, e que como pertencentes de uma sociedade, temos direitos e deveres ligados à vida social. Que como criados por um Deus Único e Verdadeiro, embora compreendido em várias dimensões, diversas religiões, devemos orientar nossas vidas com os ensinamentos que Ele nos deixou. Devemos amar e respeitar aos outros como a si mesmo e Amá-lo e Louva-lo acima de todas as coisas. E neste aspecto, a sociedade atual carece desta compreensão. Perdeu-se em parte, a ligação com o Criador. As pessoas se tornam a cada dia mais individuais, fechadas em si próprias.No ponto da formação para a arte de aprender e a arte de ensinar, vale fazer referência ao relatório da UNESCO, organizado por J. Delors e publicado pela Editora Cortez, no ano 1999. Onde ele apresenta os quatro pilares da educação: aprender a pensar, a refletir, a criticar e compreender a vida e não-vida na sociedade. Aprender a fazer, tendo claro que a educação deve também responder a algumas tarefas básicas exigidas pelo mundo técnico. Evidente que o pensar não exclui o fazer e vice-versa. Aprender a se relacionar, a conviver com os outros. A tolerância é uma das marcas deste início de milênio que precisa ser superada e o espaço de socialização precisa ser permanentemente recriado. Aprender a ser, a se encontrar consigo e com os outros que nos cercam. O neoliberalismo impõe um processo paradoxal: o individualismo e a despersonalização. Cabe ao educador, portador a arte de aprender e a arte de ensinar, contribuir para a construção de um novo paradigma que resgate o sujeito e mostre que a felicidade é sempre um processo coletivo – como dizia certo pensador: “eu sou eu e minhas circunstâncias. Não salvo a mim, se não as salvo”. O teólogo J. B. Libânio, no livro A arte de Formar-se, publicado pela editora Edições Loyola, no ano de 2002, acrescenta um quinto pilar na compreensão da educação: aprender a discernir a vontade de Deus. Onde que por meio deste encontra-se o caminho que leva a felicidade e ao equilíbrio. Para isso precisa libertar-se dos condicionamentos, encontrar a liberdade e encontrar Deus, que se manifesta ao nosso redor.Neste sentido tem-se a arte de aprender e a arte de ensinar, que pode ser alcançada por todo ser humano. Vale ressaltar aqui, que esta arte, para alguns se manifesta como vocação, chamado de dentro de si, algo que faz parte da vida. Já para outros, há a possibilidade de desenvolvê-la, por não estar tão evidente na forma de agir deste. Pode-se trabalhar para alcançá-la. Tanto em um quanto em outro, esta atitude compreende o domínio do conhecimento aplicável à realidade, o conhecimento que transforma, que trás compreensão do ser humano como uma gama de possibilidades, dotado de uma capacidade complexa e um mecanismo mental misterioso, a ser explorado e descoberto. A arte de aprender e a arte de ensinar consiste em acreditar na perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo de saber que anima os seres humanos. Acreditar que nós, seres humanos, podemos melhorar uns aos outros através do conhecimento.

O Pensamento

Pensando…
Certa vez um grego disse: “O pensamento é o passeio da alma”. Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecê-lo. Assim como no passeio levamos nosso corpo a toda parte, no pensamento levamos nossa alma a toda parte e mais longe do que o corpo, pois a alma não encontra obstáculos físicos para seu caminhar.
O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós mesmos sem sairmos de nosso interior. Por isso, outro filósofo escreveu que pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma coisa. Como um vôo sem sair do lugar.
Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento em sentidos variados e múltiplos. Podemos chegar a uma pessoa amiga, vê-la silenciosa e dizer-lhe: “Por favor, diga-me seu pensamento, em que você está pensando?”. Com isso, reconhecemos uma atividade solitária, invisível para nós e que precisa ser proferida para ser compartilhada.
Outras vezes, porém, podemos dizer a essa mesma pessoa: “Você pensa que não sei o que você está pensando?”. Agora, damos a entender que dispomos de sinais – alguma coisa que foi dita, um gesto, um olhar, uma expressão fisionômica – que nos permitem “ver” o pensamento de alguém e, portanto, acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e visíveis. O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia supor.
Algumas vezes, chegamos para alguém e indagamos: “Como é, pensou?”, e ouvimos a resposta: “Sim. Vamos fazer o trabalho”. Ou então: “Ainda estou pensando no assunto. Vamos ver depois”. Nesses casos, pensar é tomado por nós como sinônimo de deliberação e de decisão, como algo que resulta numa ação.
Muitas vezes, podem dizer-nos: “Você pensa demais, não faz bem à saúde”. Ou ouvimos a frase: “Ela ficou parada lá na esquina, quieta, pensando, pensando”. Podemos falar: “Por mais que pense nisso não consigo acreditar e, quanto mais penso, menos acredito”. Agora, pensar é visto como preocupação (fazendo mal à saúde), cisma (ficar parada, quieta, cismando), dúvida (quanto mais penso, menos acredito).
Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com o título: “O pensamento do dia é…”, querendo dizer com isso que uma determinada idéia, definindo algum assunto, foi publicamente anunciada. Essa mesma identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando, por exemplo, um crítico literário escreve: “O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos, mas tem outros banais”, classificando idéias em “boas” e “banais”, isto é, umas que dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugares-comuns ou frivolidades. Supomos, dessa maneira, que há bons e maus pensamentos, tanto assim que falamos em “pensamento positivo” e em “afastar os maus pensamentos”.
Um professor pode criticar o trabalho de um aluno dizendo-lhe: “Esse trabalho mostra que você não quis pensar”. Aqui, pensar não é só ter idéias, mas também algo que se pode querer ou não querer, algo voluntário e deliberado, uma forma de atenção e concentração. Essa imagem de concentração aparece, por exemplo, quando alguém se zanga e diz: “Querem, por favor, fazer silêncio? Não estão vendo que estou pensando?”.
E já mencionamos o célebre “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), de Descartes, e a definição do homem como “caniço pensante”, feita por Pascal. Aqui, pensar e pensamento indicam a própria essência da natureza humana.
O que dizem os dicionários
Se procurarmos pensar e pensamento nos dicionários, notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda acrescentam alguns outros sentidos.
Pensar, dizem os dicionários, significa: 1. aplicar a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento; formar e combinar idéias; julgar, refletir, raciocinar, especular; 2. exercer a inteligência; meditar, ver; 3. exercer o espírito ou a atividade consciente de uma maneira global: sentir, querer, refletir; 4. ter uma opinião, uma convicção; 5. supor, presumir, crer, admitir, suspeitar, achar; 6. esperar, tencionar; 7. preocupar-se; 8. avaliar; 9. cismar.
Pensamento, de acordo com os dicionários, significa: 1. o ato de refletir, meditar ou pensar, ou o processo mental que se concentra em idéias; 2. a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento; 3. consciência, mente, espírito, entendimento, intelecto, razão; 4. poder de formular idéias e conceitos; 5. faculdade de pensar logicamente, raciocínio, ponto de vista, formulação de um juízo; 6. aquilo que é pensado ou o resultado do ato de pensar: idéia, ponto de vista, opinião, juízo; 7. fantasia, sonho, devaneio, lembrança, recordação, cuidado, preocupação, expectativa; 8. conjunto das idéias ou doutrina de um pensador, de uma sociedade, de um grupo, de uma coletividade.
Assim, no exemplo “Você pensa demais, não é bom para a saúde”, pensar e pensamento significam preocupação; no exemplo “Por mais que pense nisso, não acredito que seja assim”, pensar e pensamento significam cisma e dúvida; no exemplo “Ainda estou pensando no assunto”, pensar e pensamento significam formar uma opinião ou um ponto de vista; no exemplo “Acabem com esse barulho, não estão vendo que estou pensando?”, pensar e pensamento significam atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito.
Se eu disser: “Penso que ela virá”, estou exprimindo uma expectativa; se disser: “Penso que você sabe disso”, estou exprimindo uma suposição; se disser: “Pensei nele a noite inteira, nem pude dormir”, estou exprimindo preocupação; se disser: “Eu a vi perdida em pensamentos”, quero dizer que vi alguém cismando, fantasiando, imaginando. Mas se eu disser: “A teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein”, estou dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de conhecimentos.
Quando procuramos a origem das palavras pensamento e pensar, descobrimos que procedem de um verbo latino, o verbo pendere, que significa: ficar em suspenso, estar ou ficar pendente ou pendurado, suspender, pesar, pagar, examinar, avaliar, ponderar, compensar, recompensar e equilibrar.
Pensar, portanto, é suspender o julgamento (até formar uma idéia ou opinião), pesar (comparar idéias, opiniões, pontos de vista), avaliar (julgar o valor de uma idéia ou opinião, ou seja, se é verdadeira ou falsa, justa ou injusta, adequada ou inadequada), examinar (idéias, opiniões, juízos, pontos de vista), ponderar (isto é, pesar idéias e pontos de vista para escolher um deles), equilibrar (encontrar o meio-termo entre extremos ou entre opostos). Pensare, derivando-se de pendere, caracteriza-se mais como uma atividade sobre idéias, opiniões, juízos e pontos de vista já existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista.
Por esse motivo, quando lemos os textos filosóficos antigos e modernos, escritos em latim, notamos que não usam pendere e pensare para dizer pensar, mas empregam dois outros verbos: cogitare e intelligere.
Cogitare significa: considerar atentamente e meditar. Esse verbo vem do outro, agere, que significa: empurrar para diante de si, e também do verbo agitare, que significa: empurrar para frente com força, agitar. Pensar, enquanto cogitare, é colocar diante de si alguma coisa para considerá-la com atenção ou forçar alguma coisa a ficar diante de nós para ser examinada.
O verbo intelligere vem da composição de duas outras palavras: inter, isto é, entre, e legere, que significa: colher, reunir, recolher, escolher e ler (isto é, reunir as letras com os olhos). Por isso, intelligere significa: escolher entre, reunir entre vários, apanhar, aprender, compreender, ler entre, ler dentro de. Donde: conhecer e entender.
Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos – pensare, cogitare e intelligere -, veremos que pensar e pensamento sempre significam atividades que exigem atenção: pesar, avaliar, equilibrar, colocar diante de si para considerar, reunir e escolher, colher e recolher. O pensamento é, assim, uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência coloca algo diante de si para atentamente considerar, avaliar, pesar, equilibrar, reunir, compreender, escolher, entender e ler por dentro.
Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos: meditar, concentrar-se, cismar, opinar, ter idéias, compreender as coisas, raciocinar, formular conceitos, ter um ponto de vista, refletir, avaliar, preocupar-se.
O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si (“passeando”) para ir colhendo, reunindo, recolhendo os dados oferecidos pela experiência, pela percepção, pela imaginação, pela memória, pela linguagem, e voltando a si, para considerá-los atentamente, colocá-los diante de si, observá-los intelectualmente, pesá-los, avaliá-los, retirando deles conclusões, formulando com eles idéias, conceitos, juízos, raciocínios, valores.
O pensamento exprime nossa existência como seres racionais e capazes de conhecimento abstrato e intelectual, e sobretudo manifesta sua própria capacidade para dar a si mesmo leis, normas, regras e princípios para alcançar a verdade de alguma coisa.
Experiências de pensamento
Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando, cismando, querendo compreender alguma coisa que nos escapa. Fazemos nossas atividades de todo dia, mas parecemos distraídos porque nossa atenção está concentrada noutra parte, naquilo que estamos querendo compreender e não conseguimos. Cansados, paramos de cismar e de dar atenção ao assunto. De repente, com susto e alegria, quase gritamos: “Entendi!”. Sentimos o mesmo que quando completamos um quebra-cabeça, todas as peças em seus devidos lugares, a figura bem visível diante de nós. Tivemos uma experiência de pensamento.
Outras vezes, assistindo a uma aula, lendo um livro científico, fazendo um trabalho no laboratório, resolvendo um problema no computador, vamos acompanhando passo a passo as idéias, os encadeamentos dos raciocínios, as relações de causa e efeito entre certas coisas, as conseqüências de uma afirmação e de uma negação e, finalmente, a conclusão a que chegam a aula, o livro, o trabalho no laboratório ou no computador. Ao término de cada uma dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não sabíamos e que fizemos um percurso para conhecê-la e compreendê-la. Tivemos uma experiência de pensamento.
Em certas ocasiões, dialogando com uma outra pessoa, a conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado, ou vai fazendo com que eu perceba que algumas idéias, que julgava claras e corretas, não são assim, são confusas e incorretas. Falando com a outra pessoa, vou desenvolvendo idéias que eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim por alguma coisa que o outro me disse. Clarifico algumas, corrijo outras, abandono outras tantas, descubro novas, tiro conclusões ou me encho de perplexidade. Tive uma experiência de pensamento.
Quando pensamos, pomos em movimento o que nos vem da percepção, da imaginação, da memória; apreendemos o sentido das palavras; encadeamos e articulamos significações, algumas vindas de nossa experiência sensível, outras de nosso raciocínio, outras formadas pelas relações entre imagens, palavras, lembranças e idéias anteriores. O pensamento apreende, compara, separa, analisa, reúne, ordena, sintetiza, conclui, reflete, decifra, interpreta, interroga.
A inteligência
A psicologia costuma definir a inteligência por sua função, considerando-a uma atividade de adaptação ao ambiente, através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou de uma dificuldade. Essa definição concebe, portanto, a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins: o instinto e o hábito.
Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais. O instinto, por exemplo, nos leva automaticamente a contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatá-la quando estamos na escuridão; leva-nos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente que possa queimar-nos. O instinto é inato. Ao contrário, o hábito é adquirido, mas, como o instinto, tende a realizar-se automaticamente. Por exemplo, quem adquire o hábito de dirigir um veículo, muda as marchas, pisa na embreagem, no acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações; quem aprende a patinar ou a nadar, realiza maquinalmente os gestos necessários, depois de adquiri-los.
Instinto e hábito são formas de comportamento cuja principal característica é serem especializados ou específicos: a abelha sabe fazer a colméia, mas é incapaz de fazer o ninho; o joão-de-barro constrói uma “casa”, mas é incapaz de fazer uma colméia; posso aprender a nadar, mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta.
O instinto e o hábito especializam as funções, os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudá-los ou para adaptar um novo meio para um novo fim, nem para usar meios novos para um fim já existente. A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas aos problemas.
A inteligência difere do instinto e do hábito por sua flexibilidade, pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim, ou de adaptar meios existentes para uma finalidade nova, pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para elas, pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários fins possíveis. Nesse nível prático, a inteligência é capaz de criar instrumentos, isto é, de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes, para que sirvam de meios a novos fins.
Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais, especialmente com os chimpanzés. O psicólogo Köhler fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes:
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, põe-se a seu lado um certo número de caixotes e prende-se uma banana no teto. Após saltos instintivos (infrutíferos) para a agarrar a banana, o chimpanzé consegue empilhar os caixotes, subir neles e agarrar o alimento;
● colocado um chimpanzé numa pequena sala, nas mesmas circunstâncias anteriores, mas oferecendo bambus em vez de caixotes, o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros, formando um instrumento para apanhar a banana.
Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana, os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes de um todo, de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim (agarrar a banana).
O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo, e não objetos isolados, é demonstrado quando, no lugar dos bambus, são colocados arames, que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta; ou quando, no lugar dos caixotes, são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes, que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana.
No entanto, observa-se algo interessante. Depois de comer a banana, o chimpanzé nada faz com os caixotes, os bambus, os arames ou as mesas. Ficam à sua volta como objetos sem sentido. Ao contrário, uma criança nas mesmas circunstâncias, depois de conseguir apanhar um doce, por exemplo, examinará os objetos. Se descobrir que são desmontáveis, ela tentará fazer, com os caixotes e as mesas, uma escada, e com os bambus e os arames, uma rede.
Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução, transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos.
A criança antecipa uma situação e transforma os dados de uma situação presente, fabricando meios para certos fins que ainda estão ausentes. Ela se lembra da situação passada, espera a situação futura, organiza a situação presente a partir dos dados lembrados, esperados e percebidos, imagina uma situação nova e responde a ela, mesmo que ainda esteja ausente.
A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal. A criança representa seu mundo e atua praticamente sobre ele. Sua inteligência difere, portanto, da do animal.
Inteligência e linguagem
Não somos dotados apenas de inteligência prática ou instrumental, mas também de inteligência teórica e abstrata. Pensamos.
O exercício da inteligência como pensamento é inseparável da linguagem, como já vimos, pois a linguagem é o que nos permite estabelecer relações, concebê-las e compreendê-las. Graças às significações escada e rede, a criança pode pensar nesses objetos e fabricá-los.
A linguagem articula percepções e memórias, percepções e imaginações, oferecendo ao pensamento um fluxo temporal que conserva e interliga as idéias.
O psicólogo Piaget, estudando a gênese da inteligência nas crianças, mostrou como a aquisição da linguagem e a do pensamento caminham juntas. Assim, por exemplo, uma criança de quatro anos ainda não é capaz de pensar relações reversíveis ou recíprocas porque não domina a linguagem desse tipo de relações. Se se perguntar a ela: “Você tem um irmão?”, ela responderá: “Sim”. Se continuarmos a perguntar: “Quem é o seu irmão?”, ela responderá: “Pedrinho”. No entanto, se lhe perguntarmos: “Pedrinho tem uma irmã?”, ela dirá: “Não”, pois a linguagem que ela possui permite-lhe estabelecer relações entre ela e o mundo, mas não entre o mundo e ela.
A inteligência humana, enquanto atividade mental e de linguagem, pode ser definida como a capacidade para enfrentar ou colocar diante de si problemas práticos e teóricos, para os quais encontra, elabora ou concebe soluções, seja pela criação de instrumentos práticos (as técnicas), seja pela criação de significações (idéias e conceitos). Caracteriza-se pela flexibilidade, plasticidade e inovação, bem como pela possibilidade de transformar a própria realidade (trabalho, artes, técnicas, ações políticas, etc.). A inteligência se realiza, portanto, como conhecimento e ação.
O conhecimento inteligente apreende o sentido das palavras, interpreta-o, inventa novos sentidos para palavras antigas ou cria novas palavras para novos sentidos. O movimento de conhecer é, pois, um movimento cujo corpo é a linguagem. Graças a ela, compartilhamos com outros os nossos conhecimentos e recebemos de outros os conhecimentos.
Comunicação, informação, memória cultural, transmissão, inovação e ruptura: eis o que a linguagem permite à inteligência. Clarificação, organização, ordenamento, análise, interpretação, compreensão, síntese, articulação: eis o que a inteligência oferece à linguagem.
Inteligência e pensamento
A inteligência colhe, recolhe e reúne os dados oferecidos pela percepção, pela imaginação, pela memória e pela linguagem, formando redes de significações com as quais organizamos e ordenamos nosso mundo e nossa vida, recebendo e doando sentido a eles. O pensamento, porém, vai além do trabalho da inteligência: abstrai (ou seja, separa) os dados das condições imediatas de nossa experiência e os elabora sob a forma de conceitos, idéias e juízos, estabelecendo articulações internas e necessárias entre eles pelo raciocínio (indução e dedução), pela análise e pela síntese. Formula teorias, procura prová-las e verificá-las, pois está voltado para a verdade do conhecimento.
Um conceito ou uma idéia é uma rede de significações que nos oferece: o sentido interno e essencial daquilo a que se refere; os nexos causais ou as relações necessárias entre seus elementos, de sorte que por eles conhecemos a origem, os princípios, as conseqüências, as causas e os efeitos daquilo a que se refere. O conceito ou idéia nos oferece a essência-significação necessária de alguma coisa, sua origem ou causa, suas conseqüências ou seus efeitos, seu modo de ser e de agir.
Assim, por exemplo, vejo rosas, margaridas, girassóis. Mas concebo pelo pensamento o conceito ou a idéia universal de flor. Sinto corpos quentes, mornos, frios, gelados, sinto o frio da neve, o calor do Sol, a tepidez agradável da água do mar ou da piscina. Mas concebo pelo pensamento o conceito ou idéia de temperatura. Vejo uma bola, no conjunto musical toco um triângulo, escrevo sobre uma mesa cujo tampo tem quatro lados iguais. Mas pelo pensamento concebo o conceito ou a idéia de esfera ou círculo, de triângulo, de quadrado. Vou além: pelo puro pensamento, formulo o conceito de figura geométrica e das leis que a regem, elaborando axiomas, postulados e teoremas.
Os conceitos ou idéias são redes de significações cujos nexos um ligações são expressos pelo pensamento através dos juízos[i], pelos quais estabelecemos os elos internos e necessários entre um ser e as qualidades, as propriedades, os atributos que lhe pertencem, assim como aqueles predicados que lhe são acidentais e que podem ser retirados sem que isso afete o sentido e a realidade de um ser.
Um conjunto de juízos constitui uma teoria, quando:
● estabelece com clareza um campo de objetos e os procedimentos para conhecê-los e enunciá-los;
● organizam-se e ordenam-se os conceitos;
● articulam-se e demonstram-se os juízos, verificando seu acordo com regras e princípios de racionalidade e demonstração.
Teoria é explicação, descrição e interpretação geral das causas, formas, modalidades e relações de um campo de objetos, conhecidos graças a conhecimentos específicos, próprios à natureza dos objetos investigados.
O pensamento elabora teorias, ou seja, uma explicação ou interpretação intelectual de um conjunto de fenômenos e significações (objetos, fatos, situações, acontecimentos), que estabelece a natureza, o valor e a verdade de tais fenômenos. Por isso falamos em teoria da relatividade, teoria genética, teoria aristotélica, teoria psicanalítica, etc.
Uma teoria pode ou não nascer diretamente de uma prática e ter ou não uma aplicação prática direta, mas não é a prática que permite determinar a verdade ou falsidade teórica e sim critérios internos à própria teoria (seja sua correspondência com as coisas teorizadas, seja a coerência interna de seus argumentos, seus raciocínios, suas demonstrações e suas provas, seja, enfim, a consistência lógica de suas significações). A prática orienta o trabalho teórico, verifica suas conclusões, mas não determina sua verdade ou falsidade.
O pensamento propõe e elabora teorias e cria métodos.
A necessidade do método
A palavra método vem do grego, methodos, composta de meta: através de, por meio de, e de hodos: via, caminho. Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa finalidade ou um certo objetivo é alcançado. No caso do conhecimento, é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais, com três finalidades:
1. conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida;
2. permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida;
3. permitir a verificação de conhecimentos para averiguar se são ou não verdadeiros.
O método é, portanto, um instrumento racional para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos.
Por que se sente a necessidade de um método? Porque, como vimos, o erro, a ilusão, o falso, a mentira rondam o conhecimento, interferem na experiência e no pensamento. Para dar segurança ao conhecimento, o pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto ou conjunto de objetos.
A Filosofia conheceu diferentes concepções de método.
Platão, por exemplo, considerava que o melhor caminho para o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertar-se do conhecimento sensível (crenças, opiniões), isto é, das imagens e aparências das coisas. Atribuía esse papel liberador à discussão racional, sob a forma do diálogo.
No diálogo, os interlocutores, guiados pelas perguntas do filósofo (no caso, Sócrates), examinam e discutem opiniões que cada um deles possui sobre alguma coisa; descobrem que suas opiniões são contraditórias e não levam a conhecimento algum. Aceitam abandoná-las e conseguem, pouco a pouco, chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada. Por se tratar de um confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias, esse método ou caminho era chamado por Platão de dialética (discussão de teses contrárias e em conflito ou oposição).
Aristóteles, no entanto, considerou a dialética inadequada ao pensamento, pois, dizia ele, tal procedimento lida com meras opiniões prováveis, não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada. Por esse motivo, definiu o procedimento filosófico-científico como um método demonstrativo que se realiza por meio de silogismos. O silogismo é um conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão verdadeira. Trata-se de um método dedutivo no qual, de duas premissas, deduz-se uma conclusão. Por exemplo:
Todos os homens são mortais.Sócrates é homem.Logo, Sócrates é mortal.
Aristóteles considerava, porém, que os objetos que são conhecidos por experiência, e não só pelo puro pensamento, deveriam seguir um método indutivo, no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo conhecimento.
Durante a modernidade (isto é, a partir do século XVII), a necessidade de um método tornou-se ainda mais imperiosa do que antes, pois, como vimos, o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade.
O sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo, desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só. Conta apenas com seu próprio pensamento. Separado do mundo, isolado com suas percepções, opiniões, idéias, sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos. Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a direção do espírito. Sobre o método, diz ele, na regra IV das Regras:
Por método, entendo regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar.
Descartes enuncia, portanto, as três principais características das regras do método:
1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método economiza esforços inúteis); e
3. que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano.
Por sua vez, Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de “aplicar a razão à experiência”, isto é, de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.
O método, nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador do pensamento, isto é, de aferidor e avaliador das idéias e teorias: guia o trabalho intelectual (produção das idéias, dos experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos.
Desde Aristóteles, a Filosofia considera que, ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades, outros métodos particulares são necessários, pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e, assim, haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da sociologia, da história e da química, e assim por diante.
É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da história da Filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento. Assim, por exemplo, Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza, pois, dizia ele, “A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos”.
Descartes, indo mais longe que Galileu, julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências, uma mathesis universalis, ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias, válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.
Os filósofos e cientistas do final do século XIX também afirmavam que um método único deveria ser seguido. Entusiasmados com os desenvolvimentos da física, julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela “ciência da Natureza”, mesmo quando o objeto fosse o homem. Agora, não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que levava à defesa de um único método de conhecimento, mas a idéia da causalidade ou de explicação causal de todos os fatos, fossem eles naturais ou humanos.
Hoje, porém, sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo, considera-se que cada campo do conhecimento deva ter seu método próprio, determinado pela natureza do objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximar-se desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria.
Assim, por exemplo, considera-se o método matemático, isto é, dedutivo, próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento; ao contrário, o método experimental, isto é, indutivo, é próprio das ciências naturais, que observam seus objetos e realizam experimentos.
Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal sentido é o que precisa ser conhecido.
No caso das ciências exatas (as matemáticas), o método é chamado axiomático, isto é, baseia o conhecimento num conjunto de termos primitivos e de axiomas, que são o ponto de partida da construção e demonstração dos objetos.
No caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc.), o método é chamado experimental e hipotético. Experimental, porque se baseia em observações e em experimentos, tanto para formular quanto para verificar as teorias. Hipotético, porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados.
No caso das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia, história, etc.), o método é chamado compreensivo-interpretativo, porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos, das práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos.
Quanto à Filosofia, embora os filósofos tenham oscilado entre vários métodos possíveis, atualmente quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos:
1. o método é reflexivo – parte da auto-análise ou do autoconhecimento do pensamento;
2. é crítico – investiga os fundamentos e as condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro, da ação ética, da criação artística e da atividade política;
3. é descritivo – descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana;
4. é interpretativo – busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos, dos fatos, das práticas e das instituições, suas origens e transformações.
Pensamento mítico e pensamento lógico
No capítulo anterior, vimos que a língua grega possuía duas palavras para referir-se à linguagem: mythos e logos. Vimos também, tanto no estudo da linguagem quanto no da inteligência, que falar e pensar são inseparáveis. Por isso mesmo, podemos referir-nos a duas modalidades do pensamento, conforme predomine o mythos ou o logos.
A tradição filosófica, sobretudo a partir do século XVIII (com a filosofia da Ilustração) e do século XIX (com a filosofia da história de Hegel e o positivismo de Comte), afirmava que do mito à lógica havia uma evolução do espírito humano, isto é, o mito era uma fase ou etapa do espírito humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou do pensamento lógico, considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e da civilização. Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a culturas “inferiores”, “primitivas” ou “atrasadas”, enquanto o pensamento lógico ou racional pertenceria a culturas “superiores”, “civilizadas” e “adiantadas”.
Essa separação temporal e evolutiva de duas modalidades de pensamento fazia com que se julgasse a presença, em nossas sociedades, de explicações míticas (isto é, as religiões, a literatura, as artes) como uma espécie de “resíduo” ou “resto” de uma fase passada da evolução da humanidade, destinada a desaparecer com a plena evolução da racionalidade científica e filosófica.
Hoje, porém, sabe-se que a concepção evolutiva está equivocada. O pensamento mítico pertence ao campo do pensamento simbólico e da linguagem simbólica, que coexistem com o campo do pensamento e da linguagem conceituais. Duas linhas de estudos mostraram essa coexistência, embora essas duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam não só diferentes, mas também, freqüentemente, contrárias e opostas.
A primeira linha vem da antropologia social, que estuda os mitos das sociedades ditas selvagens e também as mitologias de nossas sociedades, ditas civilizadas. Os antropólogos mostraram que, no caso de nossas sociedades, a presença simultânea do conceitual e do mítico decorre do modo como a imaginação social transforma em mito aquilo que o pensamento conceitual elabora nas ciências e na Filosofia. Basta ver o caráter mágico-maravilhoso dado aos satélites e computadores para vermos a passagem da ciência ao mito.
A segunda linha vem da neurologia e da análise da anatomia e da fisiologia do cérebro humano, mostrando que esse órgão possui duas partes ou dois hemisférios, num deles localizando-se a linguagem e o pensamento simbólicos e noutro, a linguagem e o pensamento conceituais. Certas pessoas, como os artistas, desenvolvem mais o hemisfério simbólico, enquanto outras, como os cientistas, desenvolvem mais o hemisfério conceitual e lógico.
Assim, a predominância de uma ou outra forma do pensamento depende, por um lado, das tendências pessoais e da história da vida dos indivíduos e, de outro lado, do modo como uma sociedade ou uma cultura recorrem mais a uma do que à outra forma para interpretar a realidade, intervir no mundo e explicar-se a si mesma.
Numa passagem célebre de uma de suas obras, Marx dizia que o mito de Zeus (portador de raios, trovões e tempestades) não mais poderia funcionar numa sociedade que inventou o pára-raios, isto é, descobriu cientificamente a eletricidade. Mas o próprio Marx mostrou como tal sociedade cria novos mitos, adaptados à era da máquina e da tecnologia.
Como o mito funciona
O antropólogo Claude Lévi-Strauss estudou o “pensamento selvagem” para mostrar que os chamados selvagens não são atrasados nem primitivos, mas operam com o pensamento mítico.
O mito e o rito, escreve Lévi-Strauss, não são lendas nem fabulações, mas uma organização da realidade a partir da experiência sensível enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss se refere a uma atividade que existe em nossa sociedade e que, em francês, se chama bricolage.
Que faz um bricoleur, ou seja, quem pratica bricolage? Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos. Vai reunindo, sem um plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o objeto que está compondo. O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa, isto é, vai reunindo as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Com esses materiais heterogêneos produz a explicação sobre a origem e a forma das coisas, suas funções e suas finalidades, os poderes divinos sobre a Natureza e sobre os humanos. O mito possui, assim, três características principais:
1. função explicativa: o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram no tempo. Por exemplo, uma constelação existe porque, no passado, crianças fugitivas e famintas morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas; as chuvas existem porque, nos tempos passados, uma deusa apaixonou-se por um humano e, não podendo unir-se a ele diretamente, uniu-se pela tristeza, fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo, etc.;
2. função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de parentesco, de alianças, de trocas, de sexo, de idade, de poder, etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo de proibições e permissões. Por exemplo, um mito como o de Édipo[ii] existe (com narrativas diferentes) em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto, sem a qual o sistema sociopolítico, baseado nas leis de parentesco e de alianças, não pode ser mantido;
3. função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da vida comunitária.
Por exemplo, entre os mitos gregos, encontra-se o da origem do fogo, que Prometeu roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitir-lhes o desenvolvimento das técnicas. Numa das versões desse mito, narra-se que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus realizando o sacrifício de um boi, mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus, comendo as carnes e enviando-lhe as tripas e gorduras. Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha: colocar perfumes e incenso nas partes dedicadas ao deus.
Com esse mito, narra-se o modo como os humanos se apropriaram de algo divino (o fogo) e criaram um ritual (o sacrifício de um animal com perfumes e incenso) para conservar o que haviam roubado dos deuses.
Como opera o pensamento mítico?
Antes de tudo, pela reunião de heterogêneos. O mito reúne, junta, relaciona e faz elementos diferentes e heterogêneos agirem uns sobre os outros. Por exemplo, corpos de crianças são estrelas, lágrimas de uma deusa são chuva, o dia é o carro do deus Apolo, a noite é o manto de uma deusa, o tempo é um deus (na mitologia grega, Cronos), etc.
Em segundo lugar, o mito organiza a realidade, dando às coisas, aos fatos, às instituições um sentido analógico e metafórico, isto é, uma coisa vale por outra, substitui outra, representa outra. No mito de Édipo, por exemplo, os pés e o modo de andar têm um significado analógico, metafórico e simbólico muito preciso. Labdáco, avô de Édipo, quer dizer coxo; Laio, pai de Édipo, quer dizer pé torto; Édipo quer dizer pé inchado.
Essa referência aos pés e ao modo de andar é uma referência da relação dos humanos com o solo e, portanto, com a terra, e simboliza ou metaforiza uma questão muito grave: os humanos nasceram da terra ou da união de um homem e de uma mulher? Se da terra, deveriam ser imortais. No entanto, morrem. Para exprimir a angústia de serem mortais e que os humanos, portanto, nasceram de um homem e de uma mulher e não da terra, o mito simboliza a mortalidade através da dificuldade para se relacionar com a terra, isto é, para andar (coxo, torto, inchado). Para exprimir a dificuldade de aceitar uma origem humana mortal, o mito simboliza a fragilidade das leis humanas fazendo Laio mandar matar seu filho Édipo, Édipo assassinar seu pai Laio e casar-se com sua mãe, Jocasta.
Em terceiro lugar, o mito estabelece relações entre os seres naturais e humanos, seja fazendo humanos nascerem, por exemplo, de animais, seja fazendo os astros decidirem a sorte e o destino dos humanos (como na astrologia), seja fazendo cores, metais e pedras definirem a natureza de um humano (como a magia, por exemplo).
Coisas e humanos se relacionam por participação, simpatia, antipatia, por formas secretas de ação à distância. O mundo é um tecido de laços e vínculos secretos que precisam ser decifrados e sobre os quais os homens podem adquirir algum poder por meio da imitação (vestir peles de animais, fabricar talismãs, ficar em certas posições, plantar fazendo certos gestos, pronunciar determinadas palavras). O mito decifra o secreto. O rito imita o poder.
Analogias e metáforas formam símbolos, isto é, imagens carregadas e saturadas de sentidos múltiplos e simultâneos, servindo para explicar coisas diferentes ou para substituir uma coisa por outra. Assim, por exemplo, o fogo pode simbolizar um deus, uma paixão, como o amor e a cólera (porque são ardentes), o conhecimento (porque este é uma iluminação), a purificação de alguma coisa (como na alquimia), o poder sobre a Natureza (porque permite o desenvolvimento das técnicas), a diferença entre os animais e os homens (porque estes cozem os alimentos enquanto aqueles os comem crus), etc.
A peculiaridade do símbolo mítico está no fato de ele encarnar aquilo que ele simboliza. Ou seja, o fogo não representa alguma coisa, mas é a própria coisa simbolizada: é deus, é amor, é guerra, é conhecimento, é pureza, é fabricação e purificação, é o humano.
O fato de o símbolo mítico não representar, mas encarnar aquilo que é significado por ele, leva a dizer (como faz Lévi-Strauss) que o pensamento mítico é um pensamento sensível e concreto, um pensamento onde imagens são coisas e onde coisas são idéias, onde as palavras dão existência ou morte às coisas (como vimos ao estudar a palavra mágica e a palavra-tabu).
Como funciona o pensamento conceitual
O pensamento conceitual ou lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico. A primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento mítico opera por bricolage (associação dos fragmentos heterogêneos), o pensamento conceitual opera por método (procedimento lógico para a articulação racional entre elementos homogêneos). Dessa diferença resultam outras:
● um conceito ou uma idéia não é uma imagem nem um símbolo, mas uma descrição e uma explicação da essência ou natureza própria de um ser, referindo-se a esse ser e somente a ele;
● um conceito ou uma idéia não são substitutos para as coisas, mas a compreensão intelectual delas;
● um conceito ou uma idéia não são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade, mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do próprio pensamento;
● um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da experiência, nem organizam a experiência nela mesma, mas, partindo dela, a sistematizam em relações racionais que a tornam compreensível do ponto de vista lógico;
● um juízo e um raciocínio buscam as causas universais e necessárias pelas quais uma realidade é tal como é, distinguindo o modo como ela nos aparece do modo como é em si mesma; as causas e os efeitos são homogêneos, isto é, são de mesma natureza;
● um juízo e um raciocínio estudam e investigam a diferença entre nossas vivências subjetivas, pessoais e coletivas, e os conhecimentos gerais e objetivos, que são de todos e de ninguém em particular. Estabelecem a diferença entre vivências subjetivas e a estrutura objetiva do pensamento em geral;
● o pensamento lógico submete seus procedimentos a métodos, isto é, a regras de verificação e de generalização dos conhecimentos adquiridos; a regras de ordenamento e sistematização dos procedimentos e dos resultados, de modo que um conhecimento novo não pode simplesmente acrescentar-se aos anteriores (como no bricolage), mas só se junta a eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais. Assim, por exemplo, a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser acrescida pela de Galileu, pois são contrárias; do mesmo modo, a física de Galileu e de Newton não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade, mas podem apenas ser consideradas um caso especial da física, quando os objetos são macroscópicos e quando a separação entre o observador e o observado são possíveis.
O pensamento lógico ou racional (ou o pensamento objetivo) opera de acordo com os princípios de identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente e causalidade; distingue verdades de fato e verdades de razão; diferencia intuição, dedução, indução e abdução; distingue análise e síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria e prática, ciência e técnica.
Se compararmos a explicação cosmogônica e a cosmológica da realidade, tais como foram elaboradas na Grécia, perceberemos melhor a diferença entre as duas modalidades de pensamento.
O pensamento cosmogônico narrava a origem da Natureza através de genealogias divinas: as forças e os seres naturais estavam personalizados e simbolizados pelos deuses, titãs e heróis, cujas relações sexuais davam origem às coisas, aos homens, às estações do ano, ao dia e à noite, às colheitas, à sociedade. Suas paixões não correspondidas se exprimiam por raios, trovões, tempestades, tufões, desertos. Seus amores e desejos realizados manifestavam-se na abundância da primavera, das colheitas, da procriação dos animais.
O pensamento cosmológico explicava a origem da Natureza pela existência de um ou alguns elementos naturais (terra-seco, água-úmido, ar-frio, fogo-quente), que, por sua força interna natural, se transformavam, dando origem a todas as coisas e aos homens. Os primeiros filósofos consideravam os elementos originários como forças divinas, mas já não eram personalizadas, nem sua ação explicada por desejos, paixões e furores.
Aristóteles sistematizou lógica e racionalmente as cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física, isto é, numa teoria ou ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as causas de seus movimentos.
Para os gregos, como vimos, movimento (kinesis) significa:
● toda mudança qualitativa de um ser qualquer (por exemplo, uma semente que se torna árvore, um objeto branco que amarelece, um animal que adoece, algo quente que esfria, algo frio que esquenta, o duro que amolece, o mole que endurece, etc.);
● toda mudança ou alteração quantitativa (por exemplo, um corpo que aumente e diminua, que se divida em outros menores, que encompride ou encurte, alargue ou estreite, etc.);
● toda mudança de lugar ou locomoção (subir, descer, cair, a trajetória de uma flecha, o deslocamento de um barco, a queda de uma pedra, o levitar de uma pluma, etc.);
● toda geração ou nascimento e toda corrupção ou morte dos seres.
Esses movimentos, diz Aristóteles, possuem causas, pois tudo o que existe possui causa, e o conhecimento verdadeiro é o conhecimento das causas. São quatro as causas dos movimentos:
1. causa material, isto é, a matéria de que alguma coisa é feita (madeira, pedra, metal, líquido);
2. causa formal, isto é, a forma que alguma coisa possui e que a individualiza e a diferencia das outras (a mesa é causa formal da madeira, a estátua é causa formal da pedra, a taça é causa formal do metal, o vinho é causa formal do líquido);
3. causa motriz ou eficiente, isto é, aquilo que faz uma matéria receber uma forma determinada (no caso dos objetos artificiais ou artefatos, a causa eficiente é o artesão – o carpinteiro que faz a mesa, o escultor que faz a estátua, o ferreiro que faz a taça, o vinicultor que faz o vinho; no caso dos seres naturais, a causa eficiente também é uma coisa natural – por exemplo, o calor derrete o metal, o Sol esquenta um corpo e lhe dá outra consistência ou forma, etc.);
4. causa final, isto é, o motivo ou finalidade para a qual a coisa existe, se transforma e se realiza (a mesa existe para que possamos usá-la para refeições, escrever, depositar objetos, etc.; a estátua, para o culto de um deus; a taça, para colocarmos bebidas; o vinho, para bebermos).
Com a física aristotélica vemos a Natureza tornar-se inteligível ao pensamento, que pode explicá-la, descrevê-la, compreendê-la e interpretá-la conceitualmente.

[i] Como já vimos, o juízo relaciona positiva ou negativamente um sujeito S e um predicado ou conjunto de predicados P; S é P; S não é P. Também relaciona S e P necessariamente: “Sócrates é mortal”; acidentalmente: “Sócrates é pequeno”; possivelmente: “Sócrates poderá vir à praça”, “Se não chover, Sócrates virá à praça”, etc.
[ii] Quando Édipo nasce, um vidente, Tirésias, prevê que o menino matará o pai e se casará com a mãe. Apavorado, o rei Laio – o pai – manda matar Édipo. O escravo que deveria matar o menino sente piedade e o lança num precipício sem verificar se está ou não morto; e entrega ao rei o coração de uma corça, como se fosse o de Édipo. A criança não morre e é recolhida por um pastor. Este, por sua vez, a entrega a um outro rei, que, idoso, lamentava não ter filhos. Ao crescer, Édipo suspeita que não é filho de seus pais adotivos e sai à procura dos pais verdadeiros. No caminho, vê uma batalha entre um grupo numeroso e um pequeno; coloca-se ao lado deste último e mata o chefe do outro grupo – seu pai, Laio. Chegando à sua cidade natal, fica sabendo que um monstro estava devorando as virgens e só interromperá a matança se alguém decifrar um enigma que propõe. Édipo decifra o enigma. Como recompensa, recebe a rainha em casamento. Casa-se com Jocasta, sem saber que se tratava de sua verdadeira mãe, e com ela tem filhos. A profecia se cumpre. A cidade será castigada com a peste e, ao tentar combatê-la, pedindo aos deuses que lhe digam o que a causou, Édipo fica sabendo, por Tirésias, que matou o pai e casou-se com a mãe. Fura os olhos e exila-se, enquanto Jocasta se suicida.
Referência:
Marilena Chauí. Convite à Filosofia: O Pensamento. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

A Linguagem

A importância da linguagem
Na abertura da sua obra Política, Aristóteles afirma que somente o homem é um “animal político”, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.
Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da linguagem, o lingüista Hjelmslev afirma que “a linguagem é inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos”, sendo “o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana.”
Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação:
Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso.
Gestos e vozes, na busca da expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.
Por seu turno, Hjelmslev afirma que a linguagem é “o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador.”
A linguagem, diz ele, está sempre à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos, acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do pensamento, “mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento”, é “o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração”.
A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes.
No entanto, no diálogo Fedro, Platão dizia que a linguagem é um pharmakon. Esta palavra grega, que em português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno e cosmético.
Ou seja, Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução.
Essa mesma idéia da linguagem como possibilidade de comunicação-conhecimento e de dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade. “Que sejam confundidos”, disse Deus.
A força da linguagem
Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.
A palavra grega mythos, como já vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a agricultura, a caça, a pesca, o artesanato, a guerra) e da vida do grupo social ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou de relação com o sagrado -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam.
O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da Gênese, na Bíblia judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem: “E Deus disse: faça-se!”, e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A palavra divina é criadora.
Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa cristã, o celebrante, pronunciando as palavras “Este é o meu corpo” e “Este é o meu sangue”, realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e africanos, os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.
A linguagem tem, assim, um poder encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado. Eis por que, em quase todas as religiões, existem profetas e oráculos, isto é, pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divinas aos humanos.
Esse poder encantatório da linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos contos infantis há palavras poderosas (“Abre-te, Sésamo!”, “Shazam!”) e encantatórias (“Abracadabra”). Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as palavras “Asa Nisa Nasa”, trazendo de volta o passado.
As palavras assumem o poder contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as pronunciar. As palavras-tabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve pronunciar a palavra “demônio” ou “diabo”, porque este aparece; em vez disso se diz “o cão”, “o demo”, “o tinhoso”). As palavras-tabus não existem apenas na esfera religiosa, mas também nos brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo, sob pena de punição para quem as pronunciar.
Existem, ainda, palavras-tabus na vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual, aborto, amante, masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista, guerrilheiro, socialista, comunista, etc.
O poder mágico-religioso da palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições, direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.
O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio. Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as expressões “Dou minha palavra” ou “Ele deu sua palavra”, para indicar o juramento feito e a “palavra empenhada” ou “palavra de honra”. É por isso também que, até hoje, nos tribunais, se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta: “Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?”, dizendo: “Juro”. Razão pela qual o perjúrio – dizer o falso, sob juramento de dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.
Nas sociedades menos complexas do que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida, sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam solenemente ao celebrante “Aceito”, para que o casamento esteja concretizado.
Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem. Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.
A outra dimensão da linguagem
Para referir-se à palavra e à linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e logos. Diferentemente do mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra, pensamento/idéia e realidade/ser. Logos é a palavra racional do conhecimento do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres).
É a palavra-pensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra-pensamento de alguma coisa: o “logia” que colocamos no final de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia, psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.
Do lado do logos desenvolve-se a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são conceitos ou idéias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.
Essa dupla dimensão da linguagem (como mythos e logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso, muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa, racional.
A origem da linguagem
Durante muito tempo a Filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.
Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.
Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.
Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos.
Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. Um gesto ou um grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.
O que é a linguagem?
A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos. Embora tão simples, essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se ocupado desde há muito tempo. Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido;
2. a linguagem é um sistema de sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos, os signos, ou objetos que indicam outros, designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc. No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras (sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas, isto é, os signos lingüísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam;
4. a linguagem tem uma função comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo neste caso conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra água, se for usada por um professor numa aula de química, conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios, chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.
A definição nos diz, portanto, que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.
No entanto, essa definição não nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a linguagem pode ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como podemos aprender uma outra língua?
Na resposta a várias dessas perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre empiristas e intelectualistas.
Empiristas e intelectualistas diante da linguagem
Para os empiristas, a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais (as palavras).
As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando, graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia dos sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial. A palavra ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de “perturbações da linguagem”: a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem conseguir compreendê-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).
Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que, portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o sentido das palavras. A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
Os intelectualistas, porém, apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a possibilidade para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma representação de um pensamento, de uma idéia ou de valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.
O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas.
A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.
Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água; quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.
As concepções empirista e intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos lingüísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas;
2. ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e das idéias, ou seja, as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo.
Esses dois pontos de concordância fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada algo perturbador e negativo. Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as coisas e representar claramente as idéias.
Por esse motivo, periodicamente, aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em “purificar” a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da física.
Purificar a linguagem
Uma dessas correntes filosóficas desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é, aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é, uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
A linguagem lógica era uma metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: “O livro é de autoria de José Antônio Silva” e, na metalinguagem lógica, diremos: “A proposição ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y, z”.
No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.
Além disso, descobriu-se que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser.
Crítica ao empirismo e ao intelectualismo
As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por exemplo, ordena-se a um afásico: “Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa”. O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e lilás-claro.
Os dois psicólogos observaram, assim, que a palavra azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que, portanto, seu problema de linguagem era também um problema de pensamento. No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso, compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento.
Esses estudos, porém, não reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo do pensamento.
A lingüística e a linguagem
Durante o século XIX, o estudo da linguagem ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado.
A linguagem era estudada sob duas perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo das raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias lingüísticas e chegar à língua-mãe original.
Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era comum aos filólogos e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralingüísticos (migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).
Tais estudos, porém, viram-se diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.
Essa descoberta teve resultados curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos (como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o “caráter da língua” segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.
A partir do século XX, uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são:
● a linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a minha;
● a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido às partes, isto é, as partes não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r). Os signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ou entidades, isto é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos;
● numa língua, distinguem-se signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal material da língua (r, l, p, b, q, g, por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação;
● a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua. Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata é convencional, mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
● como as partes (signos ou significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer pata e bata, dente e tente é dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o r e o l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos não existem nessas línguas.
Por relação com sua própria língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o r (que corresponde a um som ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em japonês) e a substituir o l por r. Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar an e am porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. A língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
● a língua é um código (conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui um emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um receptor, aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
● o sujeito falante possui duas capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua) e a performance (isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os atos de linguagem que realiza;
● a língua se realiza em duas dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
● a língua é inconsciente, isto é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecê-la cientificamente.
Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro, respondendo a cada um deles.
A lingüística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é possível dizer “The man I love”. Quando traduzimos para o português temos: “O homem que amo”. Observamos que, em inglês, parece “faltar” uma palavra: o “que”. Notamos também que em inglês parece “sobrar” uma palavra: o “I”, o “eu”, que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas de estrutura lingüística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de pão e vinho.
Para um inglês e para um francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese nem queijo; dizer queijo não é dizer cheese nem fromage.
Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social, histórico, determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.
A experiência da linguagem
Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa: emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.
Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos.
Em primeiro lugar, teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo lingüístico. Por que uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra fumaça, que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A palavra fumaça, porém, é um símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela.
O símbolo é um análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc. A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá essa relação?
Essa pergunta, como vimos, era central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade?
Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal <-> coisa indicada (realidade)
signo verbal <-> idéia, conceito, valor (pensamento)
No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma idéia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.
Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege. “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.
Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.
Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações, inventam significações, criam significações.
Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos: “Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso!”, ou então: “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma idéia que tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou ainda: “Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.
Como essas frases são possíveis? É que a linguagem tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.
Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante <-> sentido ou significação; significado <-> realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais
O mundo suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões lingüísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras novas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.
A linguagem:
● refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra;
● relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras;
● exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;
● tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.
A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:
A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial, nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações.
Linguagem simbólica e linguagem conceitual
A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora. Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão).
A linguagem simbólica realiza-se principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética.
A linguagem simbólica (dos mitos, da religião, da poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
● a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles;
● a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
● a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada;
● a linguagem simbólica leva-nos para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos, raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento;
● a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o nosso; a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes;
● a linguagem simbólica, privilegiando a memória e a imaginação, nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.
RESUMINDO…
A linguagem em sentido amplo (isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos. Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes, bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa capacidade para a performance lingüística, seja ela cotidiana, artística, científica ou filosófica;
4. fatores lingüísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações.
Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
● a linguagem não é mecanismo psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
● a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
● a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores;
● a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de nossa existência;
● a linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira;
● a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.
Referência:
Marilena Chauí. Convite à Filosofia: A linguagem. Ed. Ática, São Paulo, 2000.